Relacionamento Abusivo: um silêncio que grita por socorro


 
Relacionamento Abusivo: um silêncio que grita por socorro

Por Maria Clara Morais Sousa, Maria Eduarda Rodrigues Teixeira, Sílvia Meirelles


Relacionamento abusivo é uma forma de violência que envolve o uso de poder, controle, intimidação ou coerção sobre outra pessoa, causando danos físicos, psicológicos, emocionais ou sexuais. Esse tipo de violência pode ocorrer em qualquer tipo de relacionamento amoroso, independentemente de gênero, idade, classe social ou orientação sexual. No entanto, as mulheres são as principais vítimas desse assombro.

Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), três em cada cinco mulheres sofrem, sofreram ou sofrerão relacionamentos abusivos e esses casos aumentaram em 50% durante a pandemia. É urgente falarmos sobre relacionamento abusivo, sendo o Brasil o quinto país com mais casos de feminicídio no mundo, segundo a ONU Mulheres. 

Esses dados alarmantes revelam a urgência de se combater a violência contra as mulheres e de se promover uma cultura de respeito, igualdade e paz nos relacionamentos. Nesta reportagem, vamos mostrar as características, as consequências e as formas de prevenção e enfrentamento do relacionamento abusivo, com depoimentos de especialistas, de ativistas e de mulheres que passaram por esse tipo de relacionamento.  


Os tipos de violência: o relacionamento abusivo em vínculos afetivos amorosos e familiares

Esse tema nos remete, em geral, a vínculos afetivos amorosos, mas, considere que pode ocorrer entre parentes, amigos, colegas de trabalho, filhos e qualquer tipo de relação. Ou seja, se há interação, há possibilidade de abuso.

A psicóloga e ativista do Grupo Autônomo de Mulheres de Pelotas (GAMP Feminista), Viviane Martinez, conta que existem cinco tipos de violência que um homem pode cometer contra uma mulher, sendo elas: Moral, Psicológica, Física, Sexual e Patrimonial. Ela afirma que “as formas de fazer são as mais variadas, elas têm mais a ver com o âmbito que ocorre os tipos de violência”.

A violência moral pode ser reconhecida por meio de xingamentos e ofensas, tudo para diminuir o caráter da mulher. Já a psicológica é mais ligada ao enfraquecimento do psicológico por meio de manipulação, dependência emocional gerando baixa auto estima. 

Na violência física tudo que invade o corpo é considerado, seja um empurrão ou uma tentativa de feminicídio. Porém, caso seja algum ato que vá contra a vontade da mulher de forma sexual, pode ser chamado de violência sexual, aqui não é só contemplado o estupro, mas também qualquer tipo de constrangimento público sexual ou controle dos direitos reprodutores da indivídua.

Nos relacionamentos abusivos é comum haver um ciclo, apelidado como ciclo da violência. Viviane explica que podem ser vistas até sete fases, mas a mais divulgada são as três fases: aumento de tensão, explosão e lua de mel. A primeira fase é caracterizada pelo estresse da mulher junto com o aumento do nervosismo do agressor, a segunda é a violência em si e a terceira é o “arrependimento” do homem que promete mudar, o que pode acontecer. 

Elizabeth (nome fictício), universitária de 23 anos, relata que ouviu muitas promessas de mudança do seu abusador, mas nunca resultou em nada. “Ele oscilava muito entre eu ser uma boa menina de família, eu ser uma puta vagabunda”, afirma a mulher. 

A psicóloga destaca que: “Na psicologia a gente acredita que toda pessoa pode mudar, mas para isso ela tem que procurar a terapia”. Caso contrário, o ciclo irá continuar se repetindo. 

Luiza (nome fictício), engenheira de 46 anos, conta que no início não sabia identificar que estava em um relacionamento abusivo, ela pensava que era ciúmes como qualquer outro. Entretanto, três meses depois que o abusador foi morar na casa dela, algumas ações começaram a incomodar, como o horário para ela chegar em casa e as desculpas que o abusador inventava para não trabalhar e ficar na residência. 

Além disso, ele começou a desmerecer as amizades dela. “Ele era muito gritão, muito explosivo… E essa reação, como eu sou depressiva e como eu estava numa fase complicada, ali ele foi me dominando, eu deixava de pedir para sair, de ir para tal festa, eu sabia que seria um estresse e que eu ia me incomodar. Eu fui me anulando aos pouquinhos”, relata Luiza. Ela contou que várias vezes arrumou os pertences do abusador para ele sair da sua casa, mas ele acabava permanecendo na residência. Após um episódio de agressão física, Luiza procurou ajuda psicológica e jurídica para conseguir romper os vínculos com o abusador.

Além de relacionamentos abusivos com vínculos afetivos amorosos, a psicóloga Viviane também explica que a violência contra mulher também pode vir da família, muitas vezes devido a dependência química, sendo que “as drogas são potencializadores da violência”. Entre filhos e mães, a manipulação começa com as promessas de reabilitação, mas não param por aí.  Também é possível essa violência vir de um pai para com uma filha, sendo o motivador - na maioria das vezes - a homofobia, já que muitas vezes os pais não aceitam a orientação sexual da filha. 


Entre a lei e a vida: o desafio das mulheres que resistem ao abuso em um mundo machista

Relacionamentos abusivos são fruto de uma sociedade que se baseia no patriarcado e no machismo, ou seja, na dominação do homem sobre a mulher. Essa dominação se revela no cotidiano, desde comportamentos explicitamente violentos, até frases sutis, que parecem inofensivas. Tais comportamentos se sustentam em padrões culturais que enfatizam a subordinação da mulher ao homem e a legitimam como objeto de sua propriedade e controle.

A violência contra a mulher sempre foi ignorada ou minimizada pela sociedade e pelo Estado, que não ofereciam mecanismos eficazes de prevenção, proteção e punição aos agressores. Por muito tempo, a violência doméstica foi vista como um crime de menor potencial ofensivo, que podia ser resolvido com o pagamento de cestas básicas ou trabalhos comunitários. Não havia uma legislação específica para coibir e erradicar essa forma de violência.

Foi somente em 2006, após uma longa luta dos movimentos feministas e humanitários, que o Brasil homologou a Lei 11.340/2006, conhecida como Lei Maria da Penha. Essa lei é considerada um marco na defesa dos direitos das mulheres e no enfrentamento à violência doméstica e familiar. Ela reconhece a violência doméstica como uma violação dos direitos humanos das mulheres e como uma forma de discriminação de gênero. 

Ela define as diversas modalidades de violência e estabelece medidas de assistência e proteção às mulheres em situação de violência. Também dispõe sobre as medidas protetivas de urgência, que são medidas judiciais ou policiais que visam garantir a segurança da mulher ameaçada ou agredida pelo parceiro ou ex-parceiro. Essas medidas podem ser solicitadas pela própria mulher ou pelo Ministério Público e podem ser concedidas pelo juiz ou pela autoridade policial. Elas podem consistir em:

  • Afastamento do agressor do lar ou do local de convivência com a vítima;

  • Proibição do agressor de se aproximar da vítima, de seus familiares e de testemunhas;

  • Proibição do agressor de entrar em contato com a vítima por qualquer meio;

  • Suspensão ou restrição do porte de armas do agressor;

  • Afastamento do agressor do trabalho da vítima;

  • Prestação de alimentos provisionais à vítima;

  • Auxílio-aluguel à vítima em situação de vulnerabilidade social.

A Lei Maria da Penha representa um avanço na luta das mulheres por uma vida livre de violência e por uma sociedade mais justa e igualitária. No entanto, a lei por si só não é suficiente para eliminar a violência contra a mulher. É preciso que haja uma mudança de mentalidade e de comportamento de toda a sociedade, que deve reconhecer e respeitar a autonomia, a diversidade e a cidadania das mulheres. 

Catarina (nome fictício), universitária de 21 anos, conta que ao terminar seu relacionamento, ela pensou em pedir uma medida protetiva. Segundo ela, seu abusador ficou na porta de sua casa por algumas horas chorando e tentando reatar o relacionamento, “eu olhei e dei um basta, foi quando eu já não me vi mais sentindo pena das crises dele, quando eu não me vi mais na obrigação de fazer alguma coisa por ele e quando eu me vi sentindo medo dele” diz a mulher. 

Neusa Ledesma, advogada e ativista do GAMP Feminista, fala sobre sensibilizar a própria comunidade  para com a vítima: “Primeiro, sensibilizar a própria comunidade. Mostrar, inclusive para as mulheres em situação de violência, que elas identifiquem que aquela situação que elas estão vivendo é realmente uma situação de vulnerabilidade...e que os agentes públicos entendam que isso, de fato, que essa ação, que essa violação de direitos é uma violação grave e que demanda deste governo, desse estado, desses entes públicos, políticas e ações concretas, efetivas, para proteger essa mulher e suas famílias, e seus filhos, especialmente os filhos…”

A advogada pontua sobre a importância da sociedade como um todo se unir em prol dessa conscientização acerca da proteção da vítima: “Briga de marido e mulher, não se mete a colher? … Não. Nós precisamos sim nos envolver. A questão da violência na família não é só de âmbito privado, não é de interesse só daquela família ou daquela mulher, é de interesse da sociedade. É de responsabilidade de todos, porque os impactos, as consequências são sentidos por toda a sociedade. Então se a mulher não é respeitada, se a família não vive num ambiente um pouco mais harmonioso de diálogo, de respeito e pelo contrário, é de violência das suas diversas formas, isso vai impactar”.

Elizabeth conta que muito da sua percepção do que viveu veio por meio de um professor que trouxe a discussão sobre violência contra a mulher para a sala de aula, ela diz que “eu vi mulheres falando sobre isso, e tudo isso me fazia pensar, entendeu? Que meu namorado era parecido, que tinha alguma coisa errada com meu namorado era parecido”.

Luiza, ao refletir sobre o processo que vivenciou entre entender que estava em um relacionamento abusivo e buscar por ajuda, destaca a importância de conversar com outras mulheres sobre essa experiência e levar essa história principalmente para as mulheres mais vulneráveis. “Por isso que eu acho que tem que ir para as associações, porque uma vai passar para a outra. Se na associação têm senhoras de idade, elas vão saber onde estão as jovens que estão sendo agredidas e vão chegar ali e vão orientar, vão dizer para essas mulheres existe [ajuda], vai!”, ela comenta.  


Rede de Apoio em Pelotas: onde pedir ajuda?


Pelotas é um das poucas cidades que, atualmente, possuem uma extensa rede de apoio e auxílio para mulheres que sofrem violência de gênero. O GAMP Feminista  trabalha a 31 anos auxiliando na criação de políticas públicas e promovendo ações de prevenção da violência contra a mulher.

A assistente social, Noemi Farias, conta que “o movimento de mulheres em Pelotas foi fundamental em toda a construção da rede de defesa das mulheres”. Ela destaca que as fundadoras do GAMP Feminista tinham “uma garra” e sua “organização foi espetacular”. Com essa luta foi criado o Posto de Atendimento para a mulher, a Delegacia para a Mulher e Centro de referência à Mulher Professora Cláudia Pinho Hartleben (CRAM).

O CRAM é a “porta de entrada” para as mulheres, onde elas conhecem seus direitos, diz Noemi. Lá a mulher pode ir de forma espontânea para receber um atendimento psicossocial com assistência social e psicóloga. Caso não seja possível a mulher chegar no local, é possível pedir transporte pela Secretaria Municipal de Assistência Social (SAS).

O CRAM também realiza buscas ativas por meio de B.Os feitos pela delegacia da mulher, segundo a Eliane Sá Britto Bitencourt, presidente do centro, existem 135 mulheres em atendimento atualmente e foram feitas 234 buscas ativas em julho, as quais resultaram em 21 atendimentos. O B.O pode ser feito numa delegacia ou na Delegacia Especializada de Atendimento às Mulheres (DEAM).

Também é possível pedir assessoria jurídica pela Defesa da Universidade Federal de Pelotas (UFPel) ou atendimento médico pelo SUS, se for necessário terapia ou ajuda psiquiátrica. Tudo é apontado para a mulher após seu primeiro atendimento no CRAS, caso a instituição não possa ajudar, “a gente passa para a rede” , diz Eliane.

Dentro da rede existem dois tipos de patrulhas: a Patrulha Maria da Penha da Brigada Militar e a Patrulha Maria da Penha da Guarda Municipal. A primeira atua no pós-delito acompanhando o cumprimento da medida protetiva, já a segunda faz rondas e visitas às vítimas, além de palestras em escolas municipais sobre violência contra mulher e como combatê-lá.

Caso haja necessidade de um auxílio para moradia da mulher, existe em Pelotas a Casa Abrigo Luciety para aquelas que estejam correndo risco de vida e não possuem local para morar. 




Vivendo depois do trauma


A psicóloga Viviane Martinez conta que o primeiro passo é sempre procurar a terapia, já que baixa autoestima, depressão e ansiedade são sintomas comuns depois de sair de um relacionamento assim. “Totalmente desmotivada, não acreditando nela mesma, não se achando capaz e mesmo saindo desse relacionamento abusivo, ela continua muito tempo desacreditando dela mesmo” afirma Viviane.

Elizabeth diz que mesmo namorando com o seu abusador por dois anos, ela só conseguiu se desvincular por completo 6 anos após conhecê-lo. Ela conta que começou a namorar com um príncipe, mas após 10 meses ele mudou, sua personalidade oscilava e ele tentou começar a manipular ela. 

“Ele começou controlando roupa, por exemplo, e no final ele controlava tudo, até se eu ia poder ou não sair com a minha mãe. Entendeu?” diz Elizabeth. Com a bebedeira do namoro e as brigas incontroláveis, ela não aguentou mais e decidiu terminar, mas o controle era excessivo e ele chegou a ir atrás dela diversas vezes. 

Elizabeth conta que precisou de paciência para lidar com tudo, fez muita terapia e precisou de ajuda da família e amigos, mas que só percebeu que havia superado quando começou a namorar novamente. “Eu acho que a gente tem que ressignificar as coisas na nossa vida. Foi um relacionamento péssimo, foi horrível pra mim. Mas hoje eu consigo olhar pra ele e ver que eu cresci”.

Parecido aconteceu com Catarina, universitária de 21 anos, que conheceu o ex-namorado em um momento de carência. Ele tinha sintomas de depressão e aos poucos começou a colocar a responsabilidade da sua vida nas mãos da namorada. “Aos poucos eu comecei a me sentir responsável pelas crises dele e por evitar que qualquer coisa acontecesse.” diz Catarina.

Catarina fala que não se sentia mais com vontade de explorar suas paixões e se isolou muito, convivendo apenas com os amigos do namorado. Uma das pessoas que se afastou, foi seu melhor amigo, o qual está na sua vida desde criança “quando eu falava dele pro meu ex, era uma sensação de tipo parece que ele não estava gostando do assunto e ele não gostava das minhas amigas mais próximas então, esse era meio... eu tinha que balancear.”.

Com toda essa situação, ela se sentiu desmotivada e decidiu terminar quando não havia mais como sustentar a situação. Atualmente, Catarina percebe que o que viveu não era amor. “Não é amor, tu ter que se responsabilizar pela vida de outra pessoa. Tu tem que, em primeiro lugar, cuidar de ti. Mas se tu não tiver seguro de si, se tu não tiver se ajudando, não tem como ajudar ninguém ", afirma a mulher.

Elizabeth também concorda que o que passou não era amor “Ciúmes sem medida não é amor. Violência não é cuidado”. E completa: “E é lógico, descobrir o amor próprio. Porque você não consegue amar uma pessoa e não consegue receber amor de uma pessoa se você não tiver amor próprio.”.

Luiza, passados quatro anos do término do relacionamento abusivo, destaca que tem que denunciar e não precisa ter medo de sair desse tipo de relacionamento. “O pós tudo isso é tão gratificante. É tão gratificante saber que pode ser um instrumento para outras. Tu aprender a gostar de ti, aprender a viver contigo, aprender que tu não precisa ter alguém para terminar a tua vida. Tu pode ser feliz assim como tu és. E se tiver que aparecer… Quantos casais com 60 e 70 anos e hoje que estão se encontrando”, ela conclui. 

O relacionamento abusivo ainda é uma realidade muito frequente entre mulheres, mas não deve ser. A violência contra a mulher é um problema social que afeta não só as mulheres, mas toda a humanidade. Ela compromete o desenvolvimento, a democracia e os direitos humanos de todos e todas. 

É preciso que haja uma educação para a igualdade de gênero, que promova a desconstrução dos estereótipos e dos preconceitos que alimentam o patriarcado e o machismo. É necessário que todas as mulheres saibam que a capacidade delas de tomar as rédeas de suas próprias vidas e de participar ativamente das decisões que afetam seus destinos pertence apenas a elas.

Mas mais do que tudo: elas devem saber que não há culpa em passar por essas experiências, que elas não estão sozinhas e que homem nenhum pode mandar no seu poder de pedir ajuda.  Caso precise, grite, sua ferida pode não ser vista, mas isso não faz dela menos válida.












Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

GAMP Feminista se alia com a Themis em curso para formar e educar mulheres sobre direitos civis

Novas Promotoras Legais Populares, edição 2023, da região de Pelotas, cumprem agendas Institucionais