Que horas são?

 


                              
                              Que horas são?

Cris esperou muito tempo pela chegada do seu filho,
Foram nove meses de muita luta para conseguir montar o
Seu quartinho, fazer seu enxoval, tem até sapatinhos.
Cris, 30 anos, doméstica, fundamental incompleto e sonhadora.
Diarista em várias casas, tem ela várias patroas, algumas fizeram doações de roupinhas que em outros tempos aqueceram os seus pequenos.
Cris terá o
seu filho “solo”, já que o pai do menino partiu antes do combinado, foi infarto.
Hoje o dia chegou, e Cris não pode se conter de felicidade, finalmente terá nos braços o fruto do amor que lhe olha agora de outra dimensão.
É difícil de acreditar que essa negra alta e forte esteja parecendo uma menininha inexperiente, afinal, esse é seu primeiro filho, o seu menino.
Juntou a bolsa com todo cuidado, conferiu se não tava faltando nada, e foi com sua velha para o hospital.
Sua velha já é avó de 5 meninas e 2 meninos, mas pra ela parece que é sempre o primeiro. Logo as dores de Cris foram aumentando, já estamos chegando disse Laurita que benzeu seu netinho ainda na barriga, Cris ficou confiante.
Na maternidade lhe disseram para preencher a ficha, assinar a internação, e se dirigir à sala B. Cris mal podia andar, a moça do hospital pediu mais pressa, dizendo assim:
Cris se queres agilizar seu parto, então agiliza o passo.
Cris se envergonhou e acelerou com muita dor.
No quarto recebeu um sorinho que causou mais dores ainda e que apressou as contrações.
Cris apavorada de dor recebeu o primeiro exame de toque, 9 dedos, já estamos quase lá.
De repente chegou um obstetra com sua turma de alunos, examinou Cris, todos olharam sua vagina, algumas anotações, e mais um exame de toque, Cris gritou de dor, o doutor lhe disse assim:

A senhora gritou assim quando fez seu bebê?

Mais uma vez Cris sentiu muita vergonha e impotência. O doutor anunciou:

10 dedos! Tá na hora.
Vamos para a sala de parto disse a enfermeira, Cris mal podia andar, mas foi. As dores eram como facas lhe perfurando...

Deitou numa cadeira de parir, ficou em posição de exame ginecológico, incomoda e constrangedora.
Sua mãe ficou do lado de fora da sala de parto, Cris estava sozinha com seus gritos.

Ao seu lado alunos e doutores reclamando de sua gritaria.

Uma negra enorme dessas precisa gritar tanto?
Força mãezinha, ou o seu filho vai morrer.
Cris fez muita força.
Quase na hora de seu filho nascer, lhe fizeram um grande corte na vagina, ela tava muito assustada, mas tinha medo de que fizessem coisas ainda piores com ela, pediu força a Deus e fez uma força de leoa, e sentiu seu filho nascendo e chorando forte como ela.

Nasceu o seu menino, lhe mostraram e foram logo medir, pesar, vestir, e a Cris espiando tudo. A medica costurou o talho que havia aberto na vagina de Cris.

O menino estava bem, apenas o bracinho quebrou na hora que foi nascer, mas logo cura. A avó chorou de pena e de felicidade.
O menino era lindo e parecia com o pai, um negro lindo de lábios grossos.
Cris chamou seu menino de Francisco e pediu a Deus que protegesse o seu rebento.

Na tarde do dia seguinte receberam alta, e foram para casa com Francisco, filho de Crisiane e Luis Miguel , neto de Laurita e de João.
Francisco já é muito amado por sua mãe que agora sentia dores no talho que por isso mal pode sentar, mas fazia questão de amamentar seu menino que nasceu com as feições do pai e uma fome de vida que o faz chorar por teta de hora em hora.

Cris aprendeu com uma de suas patroas que o menino é quem sabe a hora da sua fome, e que ele já vem ao mundo pedindo que pelo menos a mamada possa ser livre.
Laurita volta e meia pergunta para a Cris:

O Francisco já tá com fome de novo, mas que horas são? Cris sempre responde:
Hora de ser livre!


"Histórias Quase Inventadas" 

Autora: JANETE FLORES, 54 anos, natural de Porto Alegre, radicada em Pelotas desde a década de 90, com formação em Artes, habilitação em Música pela Ufpel, compositora, instrumentista, cantora, artista plástica e escritora. Membra associada ao GAMP.

Pelotas, novembro de 2020


GRUPO AUTÔNOMO DE MULHERES DE PELOTAS INFORMA:

Racismo obstétrico, violência na gestação, parto e puerpério atinge mulheres negras de forma particular. Estereótipo da mulher negra como mais forte é um dos fatores que podem levar a situações de violência obstétrica.     

                              ISSO PRECISA MUDAR! 

Reverter este cenário é um grande desafio, que envolve medidas educativas voltadas para os profissionais de saúde e fundamentalmente o reconhecimento da conduta violenta na hora do parto, que entendemos como violência obstétrica.


 A violência obstétrica é aquela que acontece no momento da gestação, parto, nascimento e/ou pós-parto, inclusive no atendimento ao abortamento. Pode ser física, psicológica, verbal, simbólica e/ou sexual, além de negligência, discriminação e/ou condutas excessivas ou desnecessárias ou desaconselhadas, muitas vezes prejudiciais e sem embasamento em evidências científicas. Essas práticas submetem mulheres a normas e rotinas rígidas e muitas vezes desnecessárias, que não respeitam os seus corpos e os seus ritmos naturais e as impedem de exercer seu protagonismo.

Saiba mais: Violência obstétrica


Atenção: 

TODA A GESTANTE TEM O DIREITO DE SER ACOMPANHADA, POR UMA PESSOA DE SUA ESCOLHA DURANTE O PARTO, EXIJA O RESPEITO A 
LEI 11.108/ 7 DE ABRIL DE 2005.




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