Menstruar é um direito - Luma Costa

    Menstruar é um direito  

                                                          @Luma Costa - Aluna do Jornalismo da UFPel                 

             Quando a pobreza menstrual impede que pessoas acessem direitos básicos como saúde e educação, é preciso reivindicar o direito de menstruar. Uma discussão nova sobre um assunto antigo: a pobreza menstrual já afetou 52% das mulheres brasileiras em algum momento de suas vidas. Os dados são de uma pesquisa realizada pelo Instituto Locomotiva, em parceria com a marca de produtos menstruais Always, entre os meses de janeiro e fevereiro de 2022.  

Segundo a UNICEF, a falta de absorventes descartáveis, item facilmente encontrado em farmácias e supermercados, não é o único problema. A pobreza menstrual se caracteriza ainda quando há falta de outros produtos básicos de higiene, como sabonete e papel higiênico, além de falta infraestrutura básica, como a inexistência de banheiros e/ou informações necessárias para que alguém viva o período menstrual dignamente.



Um levantamento realizado pela UNICEF utilizou dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) angariados em outras pesquisas, como a Pesquisa Nacional de Saúde (PNS), por exemplo, e alerta para o fato que além de se tratar de uma violência à dignidade humana, a pobreza menstrual afeta também o desenvolvimento econômico e tecnológico do país. Segundo o levantamento, são pelo menos 23 mil crianças sem acesso a nenhum banheiro, nem mesmo coletivo entre famílias no local em que vivem, pessoas em situação de extrema vulnerabilidade que se submetem a situações como defecação a céu aberto. 

A estimativa da UNICEF é que 90% das meninas brasileiras passarão entre 3 a 7 anos da sua vida escolar menstruando. Privar que essas crianças e adolescentes tenham acesso a educação básica em sua integralidade, por conta de problemas relativos à falta de dignidade menstrual, torna quase impossível que desenvolvam seu máximo potencial e alcancem universidades no futuro.  E os dados podem ser ainda mais impactantes. A UNICEF ainda alerta para o fato de que a metodologia utilizada pela PNS é insuficiente para averiguar a real situação da saúde menstrual das brasileiras. 


Se os números impactam, as pessoas que os compõem abalam. Raquel Moreira, uma das coordenadoras do coletivo Kilombo Ocupação Canto de Conexão, sabe bem disso: quando criança utilizava “forros” de pano para conter o sangramento da menstruação, pois a família não tinha condições financeiras de comprar absorventes descartáveis. Entretanto, a experiência não foi suficiente para a percepção do tamanho ou abrangência do problema, já era adulta e integrante do Kilombo quando encarou a pobreza menstrual de frente. Ela conta que por conta da vergonha em se falar sobre o assunto, o problema foi observado, não relatado por alguém. 

O Canto de Conexão oferece apoio a comunidades vulneráveis de diversas formas, dentre elas está a distribuição de marmitas semanais. Acontece que com o tempo alguns voluntários perceberam que mulheres que costumavam estar sempre presentes, em algumas semanas não apareciam e pediam para parentes ou conhecidos buscarem suas doações. Quando voltavam a frequentar a ocupação, em conversas com quem tinham mais intimidade, deixavam transparecer que estavam recolhidas por conta do período menstrual. O coletivo percebeu mais uma carência em sua comunidade. Raquel fala sobre a importância de uma conexão real e da intimidade para comunidades. “É que nem os alimentos. No início doamos cestas básicas, mas alguns retornavam com os alimentos pois não tinham como cozinhá-los, fizemos toda uma arquitetura e agora oferecemos refeições prontas, e junto com elas doamos absorventes para quem precisa”. Raquel faz questão de ressaltar que o espaço também está sempre aberto à visitas de outros projetos e ONG que buscam disseminar informação sobre saúde, e que periodicamente um grupo de estudantes da área da saúde promove testagens para IST’s.


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Essa realidade difícil é algo que Eliana Barcelos, a professora Nani, conhece bem. Presidente da Ong Cuidando de Nós, situada no Passo dos Negros, uma comunidade periférica de Pelotas, ela diz que é comum que mulheres da região a procurem para pedir absorventes descartáveis. 

Nani ressalta que o principal objetivo da Ong não é o assistencialismo, mas que em uma comunidade vulnerável, a doação acaba sendo um passo necessário, para se alcançar objetivos maiores, como a qualificação profissional da comunidade. “Nossa comunidade é bem carente em vários aspectos: financeiro, emocionais, psicológicos…”.


 

  Nossos atendidos são extremamente carentes, onde se sente muito a retirada de direitos”, essas são as palavras da diretora do Instituto de Menores Dom Antônio Zattera, Patricia Frank. Ela conta que a falta de estrutura e itens de higiene básica são comuns dentre as crianças e adolescentes atendidos, que pertencem na grande maioria, à famílias bastante vulneráveis social e financeiramente.  Essas famílias costumam ser também carentes de informação, o que atrapalha, vezes por vergonha, outras pela falta de conhecimento, que orientem crianças e adolescentes sobre as maneiras adequadas de viver o ciclo menstrual e evitar problemas de saúde.

Patrícia relata que esforços para levar essa informação e conhecimento sobre autocuidado e saúde quase sempre esbarram na falta de infraestrutura, que interfere também, no direito à educação previsto no Estatuto da Criança e Adolescente, já que é cotidiano que a falta de absorventes obrigue crianças e adolescentes a faltar a escola. “Nosso papel é cuidar que isso não se reproduza, ir contra o que o sistema estabelece”. 


 

Tive a oportunidade de conversar com três meninas atendidas pela instituição, com idades entre 14 e 15, todas já menstruam, entretanto não sabem o que o sangramento mensal significa “tem algo a ver com os hormônios né?”, me perguntou a mais velha das três. Expliquei brevemente do que se tratava o ciclo menstrual e todas afirmaram ter entendido. Entretanto, as três negaram já ter passado por qualquer tipo de dificuldade relacionada à falta de itens de higiene ou infraestrutura básica. Conversando com a professora Caroline, responsável pela turma de adolescentes de 12 a 17 anos, ela relata que a maioria das meninas menstruantes faz uso mensalmente dos absorventes descartáveis doados pelo Instituto, e que, provavelmente pelo convívio diário, já não sentem mais vergonha de falar sobre o assunto.

Esse constrangimento, Maria* já viveu na pele. Vinda de uma família de 7 irmãos, quando criança passou por dificuldades financeiras e precisava poupar os poucos absorventes descartáveis aos quais tinha acesso para compromissos específicos, o que causava insegurança e vergonha.  Hoje, Maria* tem dois filhos e descobriu que possui miomas uterinos. A gestação do segundo filho foi dolorosa, o parto mais ainda. Após sofrer violência obstétrica, e tendo sangramentos recorrentes, a mulher procurou uma ginecologista com o intuito de realizar uma laqueadura, e ter uma vida mais tranquila e confortável. O procedimento foi negado pela médica, que julgou ser muito cedo para se tomar a decisão definitiva de não engravidar mais. Já adulta e em condições financeiras melhores, a mulher se pergunta como vivem as mulheres que também sofrem sangramentos recorrentes por inúmeros motivos além da menstruação, e que não têm condições financeiras de arcar com os itens de higiene necessários.
Em agosto de 2021, o Centro de Referência da Mulher, em parceria com o projeto de extensão Mais Juntas da Universidade Federal de Pelotas, lançou a campanha “Eu Menstruo”, para arrecadar absorventes descartáveis para serem doados a pessoas em situação de vulnerabilidade social. Mesmo não sendo ecologicamente a melhor opção, por gerarem muitos resíduos não recicláveis, os absorventes descartáveis seguem sendo a opção mais viável e abrangente a mulheres em situação de rua, apenadas e em situação de vulnerabilidade social extrema, por facilitarem a higiene e diminuir a chance de infecções, por exemplo.

A professora Larissa Medianeira, coordenadora do projeto Mais Juntas acredita que “co-criar” iniciativas que resolvam problemas femininos, e da população em geral, é uma das funções do projeto e da universidade como um todo. Mas ressalta que para isso é preciso, é necessário que o problema seja identificado por alguém que esteja “na ponta”, em contato direto com o problema. Além da campanha “Eu Menstruo”, que está novamente em fase de arrecadação, o projeto da UFPel ainda promove palestras e rodas de conversa com profissionais da área da saúde a respeito de saúde menstrual, sexual e do trato urinário. Foram mais de 23 mil absorventes arrecadados entre os meses de agosto e novembro. Em setembro, foi aprovada em votação na Câmara de Vereadores do município a Lei nº 6.961, que institui o Programa de conscientização sobre a menstruação e de distribuição gratuita de absorventes higiênicos, Coletores menstruais e absorventes ecológicos, nas escolas e demais órgãos públicos da cidade de Pelotas. A lei ainda prevê a realização de cursos e palestras informativas em unidades educacionais que ofereçam qualquer nível de formação, do ensino fundamental até a educação para jovens e adultos, com o objetivo de quebrar o tabu em torno da menstruação.

 

 

          

Segundo Paola Fernandes, coordenadora do Centro de Referência da Mulher de Pelotas, a proposição e tramitação da lei se deu paralelamente ao andamento da campanha “Eu menstruo”, não havendo uma ligação direta entre as duas ações. Após mais de um ano da data de aprovação, a lei ainda está em processo de implementação, e o município ainda busca maneiras de garantir a distribuição gratuita de absorventes higiênicos. O plano é que Pelotas adquira o maquinário necessário para a fabricação dos itens, mas não há perspectiva nem previsão de data para a concretização.


    

*Este é um nome fictício utilizado para preservação de identidade a pedido da fonte. Várias mulheres ouvidas pela reportagem já passaram por situações de pobreza menstrual, mas preferiram não se manifestar publicamente.



Orientação Professora Silvia Meirelles - Curso de Jornalismo da UFPel




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